15 de janeiro de 2015

A sutil, mas decisiva, diferença entre crer na revolução e compreendê-la.


Por Glailson Santos

"O ascenso histórico da humanidade, tomado como
um todo, pode ser resumido como uma sucessão de
vitórias da consciência sobre as forças cegas - na
natureza, na sociedade, no próprio homem[1]".

- Leon Trotsky

Célebres cientistas como o astrofísico Carl Sagan e o paleontólogo Stephen Jay Gold, em suas fascinantes incursões pelas mais diversas áreas da ciência, não cansavam de alertar seus incautos leitores para o fato de que a busca pelo conhecimento guarda, irremediavelmente, uma importante lição de humildade ao confrontar os seres humanos com suas próprias limitações, desmistificando nosso papel no grande palco cósmico e abrindo nossos olhos para a consciência de nossas potencialidades. Estas importantes lições por vezes fazem falta também àqueles que se dispõem a tentar transformar a realidade econômica e social na qual estamos inseridos.

            Ao analisarmos de forma critica o mundo a nossa volta neste alvorecer do século XXI, onde parece mais fácil obter um smartphone de última geração do que viver de forma digna e a miséria e a violência tornaram-se tão banais que muitos nem sequer percebem quão absurdo é ser obrigado a conviver com elas, me parece difícil negar uma incomoda conclusão: nós, humanos, não somos racionais, temos apenas o potencial para agir racionalmente. Sei que tal conclusão pode parece ligeiramente absurda e atentar contra nossa auto-imagem, tão diligentemente cultivada, mas estou convencido de que encarar essa verdade é um passo fundamental para solucionarmos os desafios que temos diante de nós.

            O fato é que de maneira geral não costumamos raciocinar sobre as nossas próprias ações e pensamentos. Fazemos o que precisamos fazer, ou o que acreditamos que precisamos fazer; fazemos o que nos ensinaram a fazer; fazemos o que fazemos por tradição, por obediência, por pressão social, por uma aparente conveniência ou por puro comodismo. A maior parte do tempo nem sequer questionamos "o que" e "porque" agimos de determinada forma. Não costumamos, nem fomos ensinados, a criticar as razões das coisas serem como são, de agirmos como agimos. Parece quase sempre mais fácil assumir que "as coisas são como sempre foram", que "as pessoas sempre agiram e sempre agirão assim" e que "questionar é perda de tempo e energia". E o irônico é que este ranço comodista e conservador, que nos leva a abrir mão de nosso potencial crítico e racional, pode ser observado, com uma freqüência preocupante, mesmo entre os abnegados que ousam questionar a ordem instituída e se dispõem a combatê-la.       
           
            A pressão pela sobrevivência na sociedade capitalista, que nos impõe um ritmo de vida alucinante e esgota as energias da classe trabalhadora, onde até mesmo as opções de lazer, limitadas e embrutecedoras, quase sempre envolvem tentativas de fuga da realidade ou a mera rendição aos instintos mais primitivos, contribui de forma decisiva para este quadro. Toda essa pressão conformista e idiotizante torna a simples perspectiva de ter que pensar, por definição uma das mais humanas das ações, algo extremamente repulsivo, inconveniente, martirizante. Não é a toa que, em geral, nos mostramos extremamente contrariados diante da necessidade de ler, estudar ou simplesmente refletir mais profundamente sobre algo. Tão pouco deve causar estranheza o fato de que muitas vezes parecemos dispostos a abrir mão voluntariamente de qualquer senso critico para nos agarrar desesperadamente a primeira ilusão conveniente que nos transmita o mínimo de conforto diante das incertezas da vida. A sociedade de classes, ao colocar o conhecimento a serviço da manutenção dos privilégios de uma pequena parcela da humanidade, torna o ato de pensar, aquilo que nos define como humanos, um sacrifício, uma tortura que nos ameaça com a incômoda consciência de nossa perturbadora situação, em uma encruzilhada que para muitos parece sem saída.

Os revolucionários não estão imunes a essas pressões, seria uma tola pretensão julgarmo-nos a parte da realidade de nossa classe e do contexto da decadente sociedade capitalista contemporânea. Nossa tarefa exige a humildade de reconhecermos sob quais pressões estamos submetidos e com quais ações concretas podemos tentar combatê-las de forma consciente, para transformar a realidade. Agir racionalmente, por definição, exige um grande esforço consciente. Não é algo assim, por se dizer, "natural".

O potencial racional é uma parte inquestionável de nossa condição humana, algo que nos diferencia dos demais elementos da natureza. Isso é tão verdadeiro que engana-se quem acredita que entre os intelectuais, os cientistas ou mesmo entre os revolucionários mais abnegados, haja alguém que tenha tido sempre uma postura estritamente racional diante dos acontecimentos. Nossa inegável condição animal nos predispõe a agir instintivamente, de forma impensada, atacando ou fugindo, sempre que nos deparamos com uma situação indesejada, desconfortável ou ameaçadora. Nossos instintos mais primitivos são reforçados por uma educação autoritária promovida por sucessivas sociedades de classes ao longo da época mais recente da história humana, onde a fé e a obediência foram, e continuam sendo, muito mais valorizadas que o pensamento crítico, o que nos condicionou a agir quase sempre sem pensar. Fomos ensinados a negar nossa própria condição de animais com potencial racional. O resultado disso é que mesmo o maior cientista, intelectual ou marxista revolucionário, por mais coerente que busque ser, por vezes é apanhado agindo de forma incoerente, irracional. Esta constatação em nada nos absolve do dever de buscarmos incansavelmente a coerência em todos os campos, mas, pelo contrário, nos alerta para a necessidade de cultivar o exercício permanente da racionalidade e o senso autocrítico.

A necessidade de uma mudança radical na forma de organização social vigente, a revolução que defendem os marxistas conseqüentes, é uma necessidade racional para o desenvolvimento da humanidade. A sanha desenfreada por lucros cada vez maiores, o desprezo pela vida humana em prol dos privilégios de uma minoria ínfima, a barbárie em que nos encontramos imersos por uma sociedade marcada pelo mais brutal individualismo, consumismo, indiferença, intolerância, descaso com nossos recursos naturais, são atitudes irracionais que ameaçam não apenas a qualidade de vida da classe trabalhadora, mas a sobrevivência da própria humanidade, em um mundo, onde sabemos, a extinção é a regra, não a exceção.

Marx afirmava que "a liberdade é a essência do homem[2]", alertando que o autoritarismo não é mais do que a luta inconseqüente pelo monopólio da liberdade.  Ressaltava, porém, que mesmo aquele que exerce o autoritarismo não pode jamais ser livre, uma vez que se torna escravo da própria necessidade de manter sua dominação sobre os demais. Mas como seria possível, então, ser livre?

Precede essa questão analisarmos o que é a liberdade. O marxismo responde ao afirmar que a liberdade não é mais do que o exercício consciente da necessidade. A liberdade absoluta, metafísica, abstrata, dos ideólogos burgueses, não é mais real do que os dragões e as mandrágoras da mitologia. A liberdade real, concreta, desejável e realizável, não nega as necessidades mais sublimes de afeto, cultura, realização e deleite, mas tampouco nos exime de satisfazer inicialmente as necessidades mais básicas por alimento, abrigo e integridade física. Neste conceito marxista de liberdade, "consciente" é a palavra-chave. Diante das necessidades que possuímos como seres concretos, biológicos, sociais e complexos, temos a possibilidade de satisfazê-las, ou mesmo negá-las, de forma consciente, planejada, racional. É esta capacidade que nos diferencia dos outros animais e do restante do domínio natural, é ela que permitiu nos libertarmos, em uma medida cada vez mais plena, da opressão da natureza; e é ela que nos dá a possibilidade de, em um futuro próximo, esperamos, nos libertarmos também da opressão do homem pelo próprio homem, nos libertarmos finalmente da sociedade de classes.

Em 1865, apenas dois anos antes de publicar seu famoso primeiro volume d’O Capital, Marx, preenchendo a um questionário proposto por suas filhas em um momento de lazer, respondeu que a luta resumia sua idéia de felicidade, assim como a submissão sintetizava sua idéia sobre a miséria. Neste mesmo curioso registro, o Mouro, como era carinhosamente referido no ambiente familiar, elegeu a máxima latina De omnibus dubitandum[3] como seu lema favorito, algo que poderia ser traduzido como: Tudo deve ser posto em dúvida!  

            A luta revolucionária contra o atual estado de submissão humana às necessidades do capital não pode, nem deve, ser um exercício de fé, algo que exija a aceitação acrítica de verdades inabaláveis. A construção de um mundo novo, livre de toda forma de opressão e exploração, onde o conjunto da humanidade possa exercer sua liberdade de forma consciente e racional, não é, nem pode ser, uma questão de dogmas, de crença, de uma desesperada necessidade de acreditar; tampouco se contenta com as vãs abstrações de quem não está disposto a criticar em sua pratica cotidiana a realidade que nos é imposta. A militância revolucionária conseqüente, aquela que não se abalará no primeiro tropeço da luta de classes, que combina a disposição mais abnegada e a determinação mais férrea, aquela que dogma algum pode sonhar inspirar, é fruto da profunda compreensão de que nosso destino não está traçado de antemão por qualquer força divina ou natural e a história humana é feita por mulheres e homens de carne e osso, de seres, por definição, capazes de transformar, não apenas o mundo a sua volta, mas a si mesmos.

Por isso o legitimo marxismo é, não só avesso, mas inconciliável com os dogmas, o determinismo e o autoritarismo, assim como repele também o diletantismo e o idealismo típicos daqueles que cultivam a falsa dicotomia entre prática e teoria, entre o agir e o pensar, que caracteriza a sociedade de classes. O materialismo nos faz compreender que a disciplina é uma necessidade para que atinjamos nossos objetivos e que ela surge do exercício de minha liberdade consciente de me organizar e fazer parte de algo maior e mais duradouro do que eu jamais poderia realizar como mero individuo. Mas reconhece, também, o valor do conselho de Lênin que dizia: "o primeiro dever de um revolucionário é ser capaz de criticar seus dirigentes[4]".

Enfim, os revolucionários devem ser capazes de compreender a profundidade das palavras do simpático e bem intencionado iluminista tardio, Carl Sagan, quando afirmava: "o primeiro pecado da humanidade foi a fé; a primeira virtude foi a dúvida". E, sendo capazes de discernir para além do determinismo e do humanismo abstrato dos iluministas, sem, contudo, negar suas importantes contribuições (o apreço pela racionalidade, o espírito critico e a abordagem materialista), compreender a possibilidade concreta e a necessidade histórica da revolução. Só então, revestidos com esta compreensão e armados com o materialismo dialético, combatendo com em igual medida tanto o dogmatismo determinista, quanto o relativismo idealista, poderemos nos lançar ao campo de batalha da luta de classes com a determinação necessária para enfrentarmos o monumental desafio que é a construção de um futuro pleno de liberdade para o conjunto da humanidade.





[1] TROTSKY, Leon. História da Revolução Russa. São Paulo, Sundermann, 2007.
[2] KARL MARX. Escrito publicado pela Nova Gazeta Renana maio de 1842 como parte de uma série de
artigos sobre a liberdade de imprensa.

[3] Relato publicado originalmente na revista britânica International Review of Social History, 1956.
[4] BROUÉ, Pierre. El partido bolchevique. São Paulo, Editora Instituto José Luís e Rosa Sundermann, 2005.

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